O Surgimento da Noite

Algumas tribos amazônicas creem que no começo dos tempos só havia dia. Era sol de manhã, sol de tarde e sol de noite, e só quando as nuvens apareciam é que se tinha um descanso para tanta luz e calor.

Mas mesmo sem sol, continuava sempre dia. É que a noite, diziam eles, estava adormecida no fundo do rio Amazonas, e até ali ninguém se animara a despertá-la.

Naqueles dias, a Cobra-Grande, um dos personagens mais importantes do folclore amazônico, não só vivia à solta por aí como também tinha uma linda filha.

O Surgimento da Noite

O esposo dessa jovem andava muito chateado, pois ela não queria dormir com ele de jeito nenhum. A desculpa da esposa era sempre a mesma:

– Deitar por que, se ainda não é noite?

O pobre tentava argumentar, dizendo que não seria nunca noite, mas não tinha jeito.

– Só deito quando anoitecer – teimava ela.

– Mas e quem vai despertar a noite do fundo das águas?

– Minha mãe sabe o segredo. Mande alguém até lá buscar um coco de tucumã.

No mesmo instante, o marido mandou três serviçais até lá.

Apesar de mortos de medo – pois não há índio que não se arrepie ao escutar o nome dessa entidade –, os serviçais foram até a Cobra-Grande e relataram-lhe o pedido da filha.

– Não o abram em circunstância alguma! – sibilou a serpente, entregando o coco aos três.

O coco fora selado com uma cobertura de breu, a fim de evitar a tentação da curiosidade.

Os emissários retornaram pelo rio na mesma canoa em que haviam partido. Durante o trajeto, o coco começou a vibrar, e um som baixinho, ao mesmo tempo rouco e fininho, escapou da sua casca lacrada.

– O que será isto? – disse um dos três índios, colando a orelha ao coco.

– O que não é para ser visto! – disse o timoneiro, arrancando o coco do curioso.

Mas o terceiro também estava curioso e, tomando o coco, colou nele a orelha.

– Tem um monte de coisas aqui dentro! – disse ele.

– Talvez sejam joias! – disse o primeiro.

Ao escutar essas palavras, o timoneiro também acabou por render-se à curiosidade.

– Está bem, vamos parar a canoa e ver o que há aqui dentro!

A canoa parou bem no meio do rio, e eles acenderam uma fogueirinha para enxergar melhor. Como sempre acontece, o que mais discursara contra a desobediência revelava-se agora o mais impaciente por praticá-la.

– Vamos, quebre de uma vez essa porcaria! – disse o timoneiro, de olhos arregalados.

– Não!... Vamos retirar apenas o breu! – disse outro, mais cauteloso. Com uma mecha do fogo eles derreteram, então, a cobertura e finalmente abriram o coco.

De repente, uma nuvem negra escapou de dentro e envolveu a canoa e o rio e o mundo todo enquanto os índios cobriam as cabeças, abaixados. Ao mesmo tempo, milhares de sapos e grilos pularam para fora do coco e se espalharam mundo afora, dando à noite a sua inconfundível trilha sonora.

A noite se espalhara por tudo, indo alcançar a casa onde morava a filha da Cobra-Grande e seu esposo.

– Veja, meu marido! – disse ela. – Algo aconteceu!

Mas ele não podia ver nada, sequer a sua amada esposa.

– Se não posso vê-la durante a noite, então jamais teremos a noite! – disse ele, enfurecido.

Então, ele fez menção de agarrá-la, mesmo sem vê-la.

– Não, espere! – gritou ela. – Agora teremos de esperar o dia! O marido caiu da rede, de desgosto.

– E haverá dia, outra vez? – disse ele, desolado.

– Sim, ele não tardará – afirmou a jovem, confiante.

E assim foi. Logo, uma luzinha despontou na escuridão dos céus.

– Veja, a estrela d’alva! – disse ela, apontando a estrela que anuncia o dia. – Agora vou separar a noite do dia, de tal sorte que teremos as duas coisas, alternadamente.

Com o surgimento da noite, havia ocorrido uma série de metamorfoses na natureza. Bichos e aves de toda espécie haviam surgido, e quando ela olhou para o marido viu que também ele havia sofrido uma mudança.

– Meu adorado! – gritou ela, radiante. – Que cujubi lindo você está!

O pobre marido havia se transformado numa galinha preta de penas esverdeadas.

– Que besteira é esta? – disse ele ao acordar, agitando as asas e falando já pelo bico.

– Oh, que maravilha! – disse ela. – A partir de agora, sempre que o dia nascer, você cantará para mim e me despertará de uma noite deliciosa de sono!

A jovem parecia mesmo feliz. Pena que o marido não parecesse tão animado com a mudança.

– Quer dizer que vou ser esta ave horrorosa o resto da vida?

Horrorosa?! – exclamou a jovem, ofendida. – Oh, Mãe-d’Água! Sempre reclamando!

Neste momento, os três emissários desastrados reapareceram. Imediatamente, o marido pulou na direção deles. Mas parou ao ver que os três emissários também estavam com os corpos cobertos de pelos negros.

A jovem começou a rir desbragadamente assim que a luz da aurora lhe permitiu ver melhor no que os três imprudentes haviam sido convertidos: três macacos de dentes arreganhados.

– Muito bem, toleirões, aí está o prêmio da sua imprudência! – disse o marido, sentindo-se muito bem vingado. – Doravante irão pular de galho em galho, de dia e de noite!

Os três macacos deram de ombros, arreganharam os dentes outra vez e saíram pulando para dentro da selva. Suas bocas estavam pretas e tinham marcas amarelas nos braços, um resquício do breu ardente que espirrara sobre eles quando arrombaram o coco no meio do rio.

Postar um comentário

Os comentários deste blog são todos moderados, ou seja, eles são lidos por nossa equipe antes de serem publicados.

Não serão aprovados comentários:

1. Não relacionados ao tema do artigo;
2. Com pedidos de parceria;
3. Com propagandas (spam);
4. Com link para divulgar seu blog;
5. Com palavrões ou ofensas a quem quer que seja.

ATENÇÃO: Comentários com links serão excluídos!

Postagem Anterior Próxima Postagem