Desvendando a Mitologia Ugarítica: Deuses, Mitos e Segredos da Antiga Canaã
Imagine um mundo perdido, soterrado sob as areias do tempo por milênios. Um mundo onde deuses governam dos picos de montanhas sagradas, onde heróis valentes lutam contra o caos do mar e a inevitabilidade da morte. Este não é um romance de fantasia, mas sim o universo vibrante e dramático da antiga cidade de Ugarit. Suas histórias, gravadas em tabuletas de argila, nos abrem uma janela para uma compreensão mais profunda das crenças que moldaram o Oriente Médio. Portanto, prepare-se para uma jornada fascinante, pois vamos explorar os deuses poderosos, os mitos emocionantes e o legado duradouro de uma das culturas mais influentes da antiguidade.
A mitologia ugarítica é, em essência, o conjunto de
crenças e narrativas religiosas do povo que habitava a cidade-estado de Ugarit,
localizada onde hoje é a Síria moderna. Descoberta por acaso em 1928 por um
agricultor, a cidade revelou um tesouro de textos escritos em uma escrita
cuneiforme única, o ugarítico. Esses textos, que datam de aproximadamente 1400
a 1200 a.C., nos oferecem uma visão sem precedentes da vida, da religião e do
pensamento dos cananeus. Consequentemente, eles são uma fonte primária para
entendermos o pano de fundo cultural e religioso que mais tarde influenciaria
muitas outras tradições, incluindo a dos antigos israelitas.
Este artigo irá guiá-lo de forma simples e direta por este mundo perdido. Vamos conhecer as divindades que compunham seu panteão, mergulhar em suas sagas épicas e entender por que essas histórias, com mais de três mil anos, ainda são tão importantes para nós hoje. Assim, desvendaremos juntos os segredos dessa civilização notável.
O que é a Mitologia Ugarítica?
Para entender a mitologia ugarítica, primeiro
precisamos falar sobre a cidade de Ugarit. Ela não era uma cidade qualquer.
Pelo contrário, era um próspero centro comercial na costa da Síria, um
verdadeiro cruzamento de civilizações. Egípcios, hititas, babilônios e muitos
outros povos passavam por ali, trocando mercadorias e, claro, ideias. Essa
mistura de culturas enriqueceu enormemente o pensamento local.
Em 1929, arqueólogos começaram a escavar o local, chamado
Ras Shamra, e encontraram algo espetacular: bibliotecas inteiras cheias de
tabuletas de argila. Muitas delas continham textos literários, hinos, rituais
e, o mais importante para nós, mitos. Essas histórias não eram apenas contos de
ninar; elas explicavam o mundo. Elas davam sentido ao ciclo das estações, à
fúria das tempestades, ao mistério da vida e da morte.
Os textos ugaríticos são, portanto, nossa principal fonte
para entender a religião cananeia da Idade do Bronze. Antes dessa descoberta,
muito do que se sabia sobre os cananeus vinha de fontes externas, como a Bíblia
Hebraica, que muitas vezes os retratava de forma negativa. As tabuletas de
Ugarit, por outro lado, nos deram a chance de ouvir os próprios cananeus
contando suas histórias. E que histórias eles contaram!
O Panteão Divino: Conhecendo os Deuses de Ugarit
O mundo dos deuses ugaríticos era muito parecido com o mundo
dos humanos: cheio de família, alianças, rivalidades e lutas por poder. Havia
uma hierarquia clara, com um deus principal no topo, mas o poder real muitas
vezes estava nas mãos de divindades mais jovens e ativas. Vamos conhecer os
personagens principais deste drama celestial.
El: O Pai Sábio e Distante
No topo do panteão estava El, cujo nome significa
simplesmente "deus". Ele era o criador, o pai de todos os deuses e
dos homens. Imagine-o como um rei idoso e sábio, com uma longa barba branca,
sentado em seu trono celestial. El era reverenciado por sua sabedoria e autoridade.
Era ele quem dava a permissão para que as coisas acontecessem, como a
construção de um palácio para outro deus.
No entanto, apesar de sua posição suprema, El muitas vezes
parece uma figura distante nos mitos. Ele toma as decisões finais, mas
geralmente são os deuses mais jovens que agem, que lutam e que movem a
história. Sua esposa era a deusa
Asera, a grande mãe, frequentemente chamada de "Aquela que Anda
sobre o Mar". Juntos, eles representavam a estrutura e a estabilidade do
cosmos.
Baal Hadad: O Herói Trovão
Se El era o rei idoso, Baal
era o príncipe guerreiro, o herói principal da maioria das sagas ugaríticas.
Seu nome completo era Baal Hadad, e ele era o poderoso deus das tempestades, da
chuva e da fertilidade. Pense nele como a força da natureza em pessoa. Quando
Baal falava, sua voz era o trovão. Quando ele agia, os raios cortavam o céu e a
chuva caía para fertilizar a terra.
Baal era jovem, ambicioso e cheio de energia. Ele não era
filho de El, mas sim de Dagon, outro deus importante. Por isso, grande parte de
sua história gira em torno de sua luta para se tornar o rei dos deuses. Ele era
conhecido pelo título de "Cavaleiro das Nuvens", uma imagem poderosa
que o mostrava cavalgando as nuvens de tempestade como um guerreiro em sua
carruagem. Sem Baal, a terra secaria, as colheitas morreriam e a fome se
espalharia. Consequentemente, ele era uma das divindades mais importantes para
o povo de Ugarit.
Anat: A Feroz Deusa da Guerra
Toda grande saga precisa de uma aliada leal, e para Baal,
essa aliada era sua irmã, Anat.
Ela era a deusa da guerra, da caça e da paixão. E quando falamos de guerra,
Anat levava isso muito a sério. Ela era incrivelmente feroz e violenta, uma
guerreira implacável que se deleitava na batalha, chegando a mergulhar até os
joelhos no sangue de seus inimigos.
Porém, Anat não era apenas destruição. Sua lealdade a Baal
era absoluta. Ela o defendia com uma fúria incomparável e era a força motriz
por trás de muitas de suas vitórias. Essa dualidade é fascinante: a mesma deusa
que podia aniquilar exércitos era também uma protetora ferrenha da vida e da
fertilidade, representadas por seu irmão. Ela era a personificação da paixão
selvagem e indomável, tanto no amor quanto na guerra.
Yam e Mot: As Forças do Caos e da Morte
Todo herói precisa de grandes vilões, e Baal tinha dois
adversários formidáveis: Yam e Mot.
Yam era o deus dos mares, rios e de
todas as águas. Ele representava o poder caótico e destrutivo do oceano. Em um
mundo onde muitas pessoas eram marinheiros e pescadores, o mar era tanto uma
fonte de vida quanto uma força aterrorizante e imprevisível. Yam era arrogante
e queria dominar todos os outros deuses. Sua batalha contra Baal é um dos
momentos mais épicos da mitologia ugarítica.
Por outro lado, Mot era o deus da morte e do
submundo. Seu nome significava literalmente "Morte". Ele governava o
reino da esterilidade, da seca e da escuridão, um lugar onde a vida não podia
florescer. Mot era o oposto direto de Baal. Enquanto Baal trazia chuva e vida,
Mot trazia a seca e o fim de tudo. O confronto entre eles não era apenas uma
briga de deuses; era a representação mítica da luta entre a estação chuvosa e
fértil e a estação seca e estéril.
Outras Divindades Importantes
Além desses personagens centrais, o panteão ugarítico era
povoado por muitas outras figuras. Havia Kothar-wa-Khasis, o deus
artesão, um ferreiro divino que criava armas mágicas para os deuses, incluindo
as clavas que Baal usou para derrotar Yam. Havia também Shapash, a deusa
do sol. Ela era a "lâmpada dos deuses", que via tudo o que acontecia
na terra e no submundo, agindo muitas vezes como mensageira e juíza nos
conflitos divinos. Cada deus e deusa tinha seu papel, criando um universo rico
e complexo.
As Grandes Sagas: O Ciclo de Baal
A história mais importante e completa encontrada em Ugarit
é, sem dúvida, o Ciclo de Baal. Esta é uma saga épica que narra a
ascensão de Baal ao poder, suas batalhas contra as forças do caos e da morte, e
seu papel fundamental na manutenção da ordem no universo. A história é
geralmente dividida em três partes principais.
A Batalha pela Realeza: Baal contra Yam
A saga começa com uma crise no conselho dos deuses. Yam, o
tirânico deus do mar, exige que os deuses o sirvam e que Baal seja entregue a
ele como escravo. Os deuses, inclusive o grande El, ficam aterrorizados com o
poder de Yam. A situação parecia perdida.
Contudo, Baal se recusa a se submeter. Ele decide enfrentar
Yam. Para ajudá-lo, o deus artesão Kothar-wa-Khasis forja duas armas mágicas
para Baal, duas clavas com nomes como "Motorista" e
"Expulsora". Em uma batalha cósmica, Baal ataca Yam. A primeira clava
atinge Yam, mas não o derruba. Então, Baal usa a segunda clava, que acerta a
cabeça de Yam com força total, esmagando-o e derrotando-o.
A vitória de Baal sobre Yam é profundamente simbólica.
Representa a vitória da ordem (representada pelo deus da tempestade que traz
chuvas regulares) sobre o caos (representado pelo mar imprevisível e
destrutivo). É uma história que ecoa em muitas outras mitologias: a luta de um
deus herói contra um monstro marinho.
A Construção do Palácio: A Consolidação do Poder
Após derrotar Yam, Baal se tornou o deus mais poderoso, mas
algo ainda faltava. Para ser um verdadeiro rei, ele precisava de um palácio,
assim como El e outras divindades importantes. Um palácio não era apenas uma
casa; era um símbolo de status, autoridade e poder.
No entanto, a construção de seu palácio precisava da
aprovação de El. Com a ajuda de sua irmã Anat e de sua mãe Asera, Baal
finalmente consegue a permissão. O palácio é construído no topo do Monte
Saphon, a montanha sagrada de Baal. A construção é magnífica, feita de cedro,
prata e ouro. O palácio tem uma janela, e através dela, Baal pode enviar suas
chuvas para o mundo. A conclusão do palácio celebra a sua realeza e a sua
função como provedor da fertilidade.
O Confronto com a Morte: Baal contra Mot
Com seu poder consolidado, Baal se torna um pouco arrogante.
Ele dá uma grande festa em seu novo palácio e convida todos os deuses, mas
comete um erro fatal: ele não convida Mot, o deus da morte. Em outras versões,
ele envia uma mensagem desafiadora a Mot. De qualquer forma, Mot se sente
insultado e desafia Baal a descer ao submundo, sua garganta faminta pronta para
devorá-lo.
Surpreendentemente, Baal teme Mot. Ele se submete e desce ao
reino da morte. A "morte" de Baal tem consequências catastróficas
para o mundo dos vivos. Sem o deus da chuva, a terra seca. As plantas murcham,
os animais sofrem e os humanos passam fome. É a chegada da seca e da
esterilidade. O próprio El desce de seu trono e lamenta, cobrindo-se de poeira
em sinal de luto.
A Vingança de Anat e a Ressurreição de Baal
A notícia da morte de Baal deixa sua irmã Anat completamente
desolada. Após um período de luto, sua tristeza se transforma em fúria. Ela
parte em busca de Mot e exige que ele liberte seu irmão. Mot se recusa,
orgulhoso de sua vitória.
O que acontece a seguir é uma das cenas mais brutais e
vívidas de toda a mitologia antiga. Anat, em sua ira, agarra Mot. Ela o corta
com uma espada, o joeira em uma peneira, o queima no fogo, o mói em um moinho
e, finalmente, semeia seus restos nos campos. Essa descrição chocante é, na
verdade, uma poderosa metáfora agrícola. Anat trata Mot exatamente como um
agricultor trata o grão colhido. Ao destruir a Morte dessa maneira, ela está,
paradoxalmente, realizando um ato que permite o renascimento da vida.
Pouco depois, El tem um sonho em que os céus chovem óleo e
os rios correm com mel, sinais de que a fertilidade está retornando. Baal é
ressuscitado! Ele volta à vida e ao seu trono no Monte Saphon. Com seu retorno,
as chuvas voltam a cair, e a vida floresce na terra mais uma vez. A saga
termina com Baal firmemente estabelecido como rei, embora o conflito com Mot
não seja definitivo; eles concordam em respeitar os reinos um do outro,
estabelecendo o ciclo eterno das estações.
A Influência Duradoura da Mitologia Ugarítica
Pode parecer que essas são apenas histórias antigas de um
povo que desapareceu há muito tempo. No entanto, a importância da mitologia
ugarítica vai muito além de suas próprias fronteiras. Sua influência pode
ser sentida em textos e culturas que moldaram o mundo ocidental.
Ecos na Bíblia Hebraica
A conexão mais estudada e fascinante é com a Bíblia
Hebraica. Os antigos israelitas eram vizinhos dos cananeus, falavam uma língua
semelhante e viviam no mesmo ambiente. Portanto, não é surpresa que existam
tantos paralelos.
- El
e Elohim: O nome do deus principal de Ugarit, El, é o mesmo
termo usado em hebraico para "deus" e é uma das principais
designações para Deus na Bíblia (Elohim). Muitas das descrições de El como
um deus sábio e patriarcal em um conselho divino encontram paralelos em
textos bíblicos.
- Baal
como Rival: Baal se torna o principal rival do Deus de Israel, Yahweh,
nas narrativas bíblicas. Histórias como a de Elias no Monte Carmelo, que
desafia os profetas de Baal, mostram uma luta direta entre as duas
teologias.
- Atributos
Divinos: Curiosamente, alguns dos títulos e descrições de Baal foram
aplicados a Yahweh em textos poéticos da Bíblia. Por exemplo, Baal é
chamado de "Cavaleiro das Nuvens". No Salmo 68:4, Yahweh recebe
um título muito semelhante. O Salmo 29, que descreve a voz poderosa de
Yahweh como um trovão, é amplamente considerado pelos estudiosos como um
antigo hino cananeu a Baal que foi adaptado.
- Leviatã
e Lotan: A Bíblia menciona um monstro marinho caótico chamado Leviatã.
Nos textos de Ugarit, Baal luta e derrota um monstro marinho de sete
cabeças chamado Lotan. A semelhança é impressionante e sugere uma
tradição mítica compartilhada.
Uma Janela para o Mundo Antigo
Além da conexão bíblica, a mitologia ugarítica nos oferece
uma visão autêntica das preocupações e da visão de mundo dos povos do Levante
na Idade do Bronze. Suas histórias nos mostram o que era importante para eles:
a chegada das chuvas para a agricultura, a necessidade de ordem para combater o
caos da natureza, e a busca por sentido nos ciclos de vida, morte e
renascimento. Assim, ao ler seus mitos, não estamos apenas lendo fantasia;
estamos nos conectando com as esperanças e os medos de pessoas reais de um
passado muito distante.
Perguntas Frequentes (FAQ)
1. Onde ficava a cidade de Ugarit?
Ugarit estava localizada na costa da Síria, perto da moderna
cidade de Latakia. O sítio arqueológico é conhecido como Ras Shamra. Sua
localização estratégica a tornou um importante centro de comércio e cultura no
mundo antigo.
2. Os deuses ugaríticos eram bons ou maus?
Assim como os deuses gregos ou romanos, os deuses ugaríticos
não se encaixam facilmente nas categorias de "bom" ou
"mau". Eles tinham personalidades complexas, com virtudes e defeitos.
Baal, o herói, podia ser arrogante. Anat, sua leal irmã, era extremamente
violenta. Eles representavam as forças da natureza e os traços humanos em uma
escala cósmica.
3. Qual é a principal história da mitologia ugarítica?
A principal e mais completa narrativa é o Ciclo de Baal.
É uma saga épica que conta como Baal se tornou o rei dos deuses ao derrotar Yam
(o Mar) e como ele mantém a ordem no mundo ao lutar contra Mot (a Morte), em um
ciclo que representa as estações do ano.
4. Existe alguma relação entre a mitologia ugarítica e a grega?
Embora sejam culturas diferentes, existem temas em comum
devido ao contato entre os povos no Mediterrâneo. Por exemplo, a luta de um
deus do céu/tempestade (como Baal ou Zeus) contra um monstro mais antigo ou
caótico é um tema recorrente. Além disso, o conceito de um panteão de deuses
com dramas familiares e lutas por poder é semelhante.
5. Como sabemos tudo isso sobre Ugarit?
Nosso conhecimento vem quase inteiramente da descoberta de
milhares de tabuletas de argila nas ruínas da cidade a partir de 1929. Essas
tabuletas foram escritas em várias línguas, incluindo o ugarítico, uma escrita
cuneiforme alfabética que foi decifrada por estudiosos, permitindo-nos ler suas
histórias diretamente.
Conclusão
A redescoberta de Ugarit e sua rica mitologia foi como
encontrar um capítulo perdido da história humana. As histórias de El, Baal,
Anat e seus adversários nos transportam para um tempo em que os mitos eram a
principal forma de entender o universo. Elas nos mostram que a luta entre a
ordem e o caos, a vida e a morte, a chuva e a seca, são preocupações humanas
universais e atemporais.
A mitologia ugarítica não é apenas uma coleção de contos curiosos. Pelo contrário, é uma peça fundamental no quebra-cabeça da história religiosa do Oriente Médio. Ela fornece o contexto para muito do que veio depois, enriquecendo nossa compreensão de outras culturas e textos, incluindo a Bíblia. Assim, ao mergulhar nessas sagas antigas, percebemos que, embora os nomes dos deuses tenham mudado, as grandes questões que eles representam continuam a ecoar em nossas próprias vidas hoje. O legado de Ugarit, gravado em argila, prova que as boas histórias, aquelas que tocam o cerne da experiência humana, nunca morrem de verdade.