Banebdjedet: O Senhor Carneiro de Mendes, Símbolo de Fertilidade e Poder no Egito Antigo
No coração do Delta do Nilo, onde a terra fértil se encontrava com as águas que davam vida, os antigos egípcios veneravam um deus que encarnava a força vital da natureza e a essência do poder divino. Este era Banebdjedet, o deus com cabeça de carneiro da cidade de Mendes. Ele não era apenas uma divindade da fertilidade, garantindo a prosperidade dos rebanhos e a abundância das colheitas, mas também uma figura de autoridade, um juiz sábio entre os deuses e a alma viva de algumas das mais poderosas forças do universo. Sua história é uma fascinante viagem pela complexa e rica tapeçaria da mitologia egípcia, revelando como um deus local pôde se tornar um símbolo de poder e continuidade para toda uma civilização.
A figura de Banebdjedet ou Banebedjedete
emerge das brumas do tempo, profundamente enraizada na cidade de Mendes, ou Djedet
em egípcio. Seu nome, que significa "O Ba (alma) do Senhor de
Djedet", já revela sua importância. Para os egípcios, o Ba era uma
parte fundamental da alma, a personalidade e o caráter de um ser que continuava
a existir após a morte. Ao ser chamado de a "alma" de um senhor
divino, Banebdjedet era visto como a manifestação física e o poder terreno de
uma força criadora primordial. Este deus-carneiro, com seus chifres imponentes
e olhar penetrante, representava a virilidade, a potência e o ciclo incessante
da vida, morte e renascimento, conceitos que eram a base da visão de mundo
egípcia.
Ao longo de milênios, o culto a Banebdjedet floresceu, transformando Mendes em um dos centros religiosos mais importantes do Baixo Egito. Ele se tornou o centro de uma família divina, formou alianças com os maiores deuses do panteão e desempenhou um papel crucial em um dos mitos mais importantes da história egípcia: a disputa pelo trono entre Hórus e Set. Este artigo mergulha na história de Banebdjedet, explorando suas origens, seus símbolos, sua família, seu culto e o legado duradouro de uma divindade que era, ao mesmo tempo, a força bruta da natureza e a voz da sabedoria divina.
As Origens de Banebdjedet: O Carneiro Sagrado de Mendes
A adoração a Banebdjedet está intrinsecamente ligada à
cidade de Mendes, localizada na região leste do Delta do Nilo. Esta área, com
suas pastagens verdejantes e canais sinuosos, era um ambiente natural para o
florescimento de um culto focado na fertilidade e na agricultura. O carneiro,
com sua óbvia associação com a procriação e a força, tornou-se o animal sagrado
perfeito para representar essas energias vitais.
Mendes: O Berço do Culto
Mendes, conhecida pelos egípcios como Per-Banebdjedet
("A Casa de Banebdjedet"), foi a capital do 16º nomo (distrito
administrativo) do Baixo Egito. A cidade ganhou grande proeminência,
especialmente durante o Período Tardio, chegando a ser a origem da 29ª Dinastia
de faraós. A ascensão de governantes de Mendes ao trono do Egito elevou o
status de seu deus padroeiro, consolidando a importância de Banebdjedet em todo
o reino.
Escavações arqueológicas em Mendes revelaram os restos de um
grande templo dedicado ao deus-carneiro. Embora grande parte da estrutura tenha
se perdido no tempo, os achados incluem enormes sarcófagos de granito
destinados aos carneiros sagrados mumificados, demonstrando a profunda
veneração que esses animais recebiam como a encarnação viva do deus na Terra.
O Simbolismo do Carneiro
No antigo Egito, o carneiro (Ovis platyra aegyptiaca)
era um símbolo poderoso de virilidade, energia criadora e liderança. Sua força
e capacidade de procriação eram vistas como um reflexo direto do poder dos
deuses criadores. Por essa razão, várias divindades importantes foram
associadas ao carneiro, como Khnum, o deus que moldava os seres humanos
em sua roda de oleiro, e o poderoso Amon-Rá,
especialmente em sua forma criadora.
Banebdjedet era a personificação máxima desse simbolismo no Delta. Ele não era apenas um deus da fertilidade animal, mas da fertilidade em todos os seus aspectos: a fecundidade da terra, a prosperidade do povo e a continuidade da realeza. Acreditava-se que sua energia vital garantia o sucesso das colheitas e a multiplicação dos rebanhos, assegurando a sobrevivência e o bem-estar da comunidade.
A Família Divina: A Tríade de Mendes
Como era comum na teologia egípcia, as principais divindades
de uma cidade formavam uma tríade familiar, representando o ciclo completo da
criação. Em Mendes, Banebdjedet era o patriarca de uma dessas famílias
sagradas, ao lado de sua consorte e de seu filho.
Hatmehit: A Deusa dos Peixes
A esposa de Banebdjedet era Hatmehit, uma deusa peixe
cujo nome significa "A Principal dos Peixes". Ela era uma divindade
antiga e importante no Delta, possivelmente até mesmo a principal divindade de
Mendes antes da ascensão proeminente de Banebdjedet. Hatmehit era a protetora dos
peixes e dos pescadores, garantindo a abundância de uma das principais fontes
de alimento da região.
Sua união com o deus-carneiro simbolizava a fusão das duas
fontes mais vitais de sustento do Delta: a agricultura e a pesca. Juntos, Banebdjedet
e Hatmehit representavam a totalidade da prosperidade e da abundância que a
terra e as águas do Nilo podiam oferecer.
Har-pa-khered (Harpócrates): A Criança Divina
O filho de Banebdjedet e Hatmehit era Har-pa-khered,
mais conhecido por seu nome grego, Harpócrates.
Ele era a forma infantil do deus Hórus e era frequentemente representado como
uma criança nua, com um dedo na boca, um gesto que os gregos interpretaram
erroneamente como um sinal de silêncio, mas que para os egípcios era
simplesmente um símbolo da infância.
Como o filho da tríade, Harpócrates representava o sol nascente, a promessa de um novo dia e a continuidade do ciclo da vida. Sua presença na família de Mendes completava o ciclo de pai (a força criadora), mãe (o ambiente nutritivo) e filho (o resultado da criação e a esperança para o futuro). A Tríade de Mendes era, portanto, um poderoso símbolo de estabilidade e renovação.
As Múltiplas Faces de um Deus: Iconografia e Sincretismo
A representação artística de Banebdjedet é única e
carrega um profundo significado teológico. Ele era mais comumente retratado
como um homem com a cabeça de um carneiro ou, em sua forma mais complexa e
poderosa, com quatro cabeças de carneiro.
As Quatro Cabeças de Carneiro: A Alma dos Deuses Primordiais
A iconografia de quatro cabeças não era arbitrária. Ela
representava a crença de que Banebdjedet era a manifestação da alma (Ba)
dos quatro primeiros e mais importantes deuses que governaram o mundo:
1. Rá:
O deus-sol, a fonte de toda a criação.
2. Shu:
O deus do ar, que separou o céu e a terra.
3. Geb:
O deus da terra, o solo fértil.
4. Osíris:
O deus do submundo, da ressurreição e da vegetação.
Ao incorporar as almas desses quatro deuses, Banebdjedet
se tornava uma força cósmica, uma divindade que unia os poderes do sol, do céu,
da terra e do além. Essa forma de quatro cabeças, geralmente voltadas para os
quatro pontos cardeais, simbolizava seu poder universal e sua autoridade sobre
todos os aspectos da criação.
O Senhor do Pilar Djed
O nome de Banebdjedet, "Senhor de Djedet", também
o conectava ao poderoso símbolo do pilar Djed. Este símbolo, que se
assemelha a uma coluna com quatro barras horizontais no topo, representava
estabilidade, permanência e a espinha dorsal do deus Osíris. A cerimônia
de "erguer o pilar Djed" era um ritual crucial que simbolizava a
ressurreição de Osíris e a estabilidade do reinado do faraó. Ao ser o
"Senhor de Djedet", Banebdjedet era também o guardião da estabilidade
cósmica e da ordem divina.
Sincretismo: A Fusão com Osíris e Rá
A complexa teologia egípcia permitia que os deuses se
fundissem e compartilhassem atributos. Banebdjedet desenvolveu uma
conexão extremamente forte com Osíris. Em textos como o "Livro da
Vaca Celestial", é dito que o "Ba de Osíris é o carneiro de
Mendes". Acreditava-se que, após sua morte nas mãos de Set, a alma de
Osíris encontrou refúgio no carneiro sagrado de Mendes. Por isso, um carneiro
vivo era mantido no templo de Mendes e venerado como a encarnação de Osíris, e
após sua morte, era mumificado e enterrado com grande cerimônia.
Além de Osíris, Banebdjedet também foi sincretizado com Rá. Como uma divindade de fertilidade e poder, ele representava o aspecto criador e vital do deus-sol. Essa fusão resultou no deus Banebdjedet-Rá, uma divindade que abrangia tanto o poder gerador da vida quanto a autoridade suprema do sol.
O Juiz Divino: Banebdjedet na Disputa de Hórus e Set
Um dos papéis mais famosos de Banebdjedet na
mitologia egípcia foi o de conselheiro e árbitro no grande tribunal dos deuses
durante a épica disputa entre Hórus
e Set pelo trono do Egito. Este mito, registrado no Papiro Chester
Beatty I, é fundamental para a ideologia da realeza egípcia.
O Contexto da Disputa
Após o assassinato de Osíris por seu irmão Set, o trono do
Egito ficou vago. Hórus, filho de Osíris, reivindicou seu direito de
primogenitura como o herdeiro legítimo. Set, por outro lado, argumentou que ele
era o mais forte e experiente para governar. A disputa se arrastou por oitenta
anos, com os deuses divididos sobre quem apoiar.
A Intervenção Sábia de Banebdjedet
Quando o caso foi levado ao tribunal divino, presidido por
Rá, a indecisão reinava. Foi nesse momento que Banebdjedet, o venerável
Senhor de Mendes, interveio. Em vez de tomar um partido imediatamente, ele fez
uma sugestão diplomática: que os deuses escrevessem uma carta à deusa Neith,
a antiga e sábia deusa da guerra e da criação, para que ela desse seu parecer.
O conselho de Banebdjedet foi aceito, demonstrando o
respeito que ele comandava entre as outras divindades. Neith respondeu,
declarando que o trono pertencia a Hórus. No entanto, a disputa continuou, e
mais tarde no processo, Banebdjedet ofereceu outra opinião. Ele sugeriu
que o trono fosse dado a Set, argumentando que ele era o irmão mais velho de
Osíris.
Essa aparente contradição não deve ser vista como uma falha, mas sim como um reflexo de seu papel como um juiz que considerava todos os ângulos da lei e da tradição. Sua primeira sugestão buscou uma opinião externa e sábia, enquanto a segunda se baseava no princípio da antiguidade. No final, Hórus foi vitorioso, mas o papel de Banebdjedet no processo solidificou sua imagem como uma divindade de grande sabedoria e autoridade, um mediador que buscava a ordem e a justiça.
O Culto em Mendes: Veneração ao Deus-Carneiro
O culto a Banebdjedet em Mendes era vibrante e único
em suas práticas. A característica mais distintiva era a veneração de um
carneiro sagrado vivo, que era considerado a encarnação terrena do deus.
O Carneiro de Mendes
Este carneiro sagrado vivia no templo, onde era cuidado e
adorado pelos sacerdotes. Ele era o oráculo da cidade; suas ações e movimentos
eram interpretados como mensagens divinas. Visitantes de todo o Egito vinham a
Mendes para consultar o carneiro e buscar suas bênçãos. Acreditava-se que ele
possuía um poder de fertilidade extraordinário, e rituais eram realizados para
transferir essa potência para os rebanhos e para as pessoas.
Quando o carneiro sagrado morria, o luto tomava conta da
região. O animal era mumificado com o mesmo cuidado dispensado a um faraó e
enterrado em uma necrópole especial, dentro de um enorme sarcófago de pedra. Um
novo carneiro, identificado por marcas sagradas específicas, era então
escolhido para tomar seu lugar, garantindo a presença contínua do deus na
cidade.
A Controvérsia do "Bode de Mendes"
O historiador grego Heródoto, que visitou o Egito no século
V a.C., descreveu o culto em Mendes. No entanto, ele se referiu ao animal
sagrado como um "bode", não um carneiro. Essa confusão, possivelmente
devido a uma tradução equivocada ou a uma variação local do animal, teve
consequências duradouras.
Séculos mais tarde, o ocultista francês Éliphas Lévi, no século XIX, baseou-se nessa descrição para criar sua famosa imagem de Baphomet, uma figura com cabeça de bode que ele associou aos Cavaleiros Templários e ao satanismo. Essa associação infeliz ligou o nome de Mendes ao ocultismo e a imagens demoníacas, uma distorção completa do papel original de Banebdjedet como um deus da vida, da fertilidade e da ordem divina. É crucial entender que o deus de Mendes era um carneiro, um símbolo de criação, e não tinha nenhuma conotação maligna na religião egípcia.
Conclusão: O Legado de Banebdjedet
Banebdjedet foi muito mais do que um simples
deus-carneiro. Ele foi a personificação da força vital que pulsava no Delta do
Nilo, um símbolo de virilidade, criação e poder inabalável. Em sua forma de
quatro cabeças, ele unia as forças dos deuses primordiais, governando o
universo com uma autoridade tranquila. Como o "Ba" de Osíris, ele
oferecia uma promessa de renascimento e continuidade, garantindo que a vida
sempre triunfaria sobre a morte.
Sua sabedoria como juiz divino na contenda entre Hórus e Set
revelou uma divindade que valorizava a ordem, a diplomacia e a justiça. O culto
em Mendes, com seu venerado carneiro vivo, mostra a profunda conexão que os
egípcios sentiam com o mundo natural, vendo o divino manifestado nos animais ao
seu redor.
Embora seu nome tenha sido erroneamente associado a figuras
sombrias em épocas posteriores, o verdadeiro legado de Banebdjedet é o
de um deus da vida em sua forma mais potente. Ele nos lembra da importância da
fertilidade, da estabilidade e do poder que reside no ciclo eterno da natureza,
um poder que os antigos egípcios reconheceram, reverenciaram e celebraram na
majestosa figura do Senhor Carneiro de Mendes.
Perguntas e Respostas sobre Banebdjedet
1. Banebdjedet era um deus bom ou mau?
Na mitologia egípcia, o conceito de "bem" e
"mal" absoluto era diferente do nosso. Banebdjedet era uma
divindade positiva, associada à criação, fertilidade, vida e ordem. A
associação negativa com o "Bode de Mendes" e o satanismo é uma
invenção moderna que não tem base na religião egípcia antiga.
2. Qual a diferença entre Banebdjedet e Khnum?
Ambos eram deuses-carneiro, mas tinham centros de culto e
funções primárias diferentes. Banebdjedet era o deus principal de
Mendes, no Baixo Egito, e estava fortemente associado à alma de Osíris e à
virilidade. Khnum, venerado principalmente em Elefantina, no Alto Egito,
era conhecido como o oleiro divino que criava os seres humanos e seus corpos em
sua roda.
3. Por que Banebdjedet tinha quatro cabeças?
As quatro cabeças de carneiro simbolizavam sua união com as
almas (Ba) dos quatro primeiros deuses a governar o Egito: Rá (sol), Shu
(ar), Geb (terra) e Osíris (submundo). Isso o tornava uma divindade de poder
cósmico e universal.
4. O que era a Tríade de Mendes?
A Tríade de Mendes era a família divina adorada na cidade.
Era composta por Banebdjedet como o pai, sua esposa Hatmehit (a
deusa peixe) como a mãe, e seu filho Har-pa-khered (Harpócrates, ou
Hórus, a Criança) como o filho.
5. Qual foi o papel de Banebdjedet no mito de Hórus e Set?
Ele atuou como um conselheiro sábio e juiz no tribunal dos deuses. Ele sugeriu que a deusa Neith fosse consultada para dar um veredito e mais tarde argumentou com base na tradição. Seu papel foi o de um mediador que buscava uma resolução ordenada para o conflito.